Crônica, segundo o dicionário:

1. História que expõe os fatos em narração simples e segundo sua ordem;
2. Biografia escandalosa;
3. Diz-se da doença permanente no indivíduo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Porto (seguro) do "Príncipe"

O pior já tinha passado, agora era só esperar a poeira baixar antes de arriscar sair de casa. Casa, aliás, quase intacta. Ajuda divina, afinal, era um homem de fé.

As poucas notícias vinham pelo rádio à pilha que ele escutava baixinho, bem próximo ao ouvido, na sala escura por falta de energia.

Agora tornara-se um refugiado, fugindo do comprometimento com o povo que tinha escolhido, anos atrás, como seu. A intenção inicial era ajudar, levar um pouco de paz. Mas agora a situação era diferente e pedia cautela. Ele sabia falar sobre a paz e o amor em seus discursos inflamados, mas no meio do caos, era impotente.

Seus suprimentos estavam devidamente escondidos, temia um saque, uma rebelião, uma invasão ao seu reduto. Ali, tudo estava bem, tudo estava em paz. O rádio dizia que a ajuda internacional estava chegando, não havia com que se preocupar, sua consciência estava tranquila. Ajoelhou e rezou por si mesmo.

Dias se passaram e tudo parecia mais calmo. Às vezes arriscava abrir um pedacinho da cortina e espiar as ruas desertas. Vez ou outra alguém passava correndo e ele se escondia. Estava protegido.

No fim do noticiário daquele dia, ao desligar o rádio, ouviu uma voz de mulher, um cântico que parecia já ter ouvido antes. Lembrou-se, era uma canção de ninar que as mães costumavam cantar.

Olhou pela janela e não viu ninguém. Abriu uma fresta da porta e olhou para a rua. Ninguém. Acreditou que pudesse estar tendo alucinações, mas percebeu que o som vinha da lateral da casa. E, com a coragem de um missionário cristão, deu alguns passos naquela direção.

Não queria ter visto aquela cena, nem ter sentido o que sentiu. Uma mulher suja, de roupas rasgadas, segurava o filho pequeno nos braços, morto, e cantava pra ele a única canção que lembrava naquele momento.

A mulher olhou nos olhos daquele homem branco, limpo, que parecia ter surgido de outro planeta pois em nada se parecia com um habitante dali.

- Ele correu para buscar ajuda e se perdeu. Acabou morrendo aqui. - disse ela, com lágrimas no rosto e uma dor delicada na voz.

Sua garganta se fechou. O nó! Virou-se de costas e partiu sem dizer nada, deixando a porta da casa entreaberta. Nunca mais foi visto

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Porta-retrato-falado

Ele não sabia mais o que fazer, já havia pensado em tudo, mas nada era capaz de apagar aquele cheiro de solidão. Há muito não eram mais aquele casal perfeito dos porta-retratos espalhados pela casa. Sentia saudades daquele tempo, do sorriso dela, dos carinhos mútuos, da compreensão e do perdão sempre disposto.

Agora, apenas olhava aquele rosto frio e ouvia o silêncio aterrador. Surtou. Ajoelhou-se ao lado dela em prantos, com um de seus porta-retratos em mãos.

- Há anos eu fico aos seus pés e te ouço dizer que eu faço tudo errado. A verdade é que eu nunca fui bom o suficiente pra você.

Silêncio.

- Talvez não seja só impressão, a verdade é que nunca foi amor. Nos casamos por decisão, por compaixão, porque não havia mais nada a fazer.

Silêncio.

- E nós nunca fomos felizes, Rosa. - lançou um dos porta-retratos na parede - Essas fotos não são nada mais que uma felicidade inventada, não era real pois, se fosse, não acabaríamos assim.

Silêncio.

- Durante muitos meses (e por que não "anos"?) eu esperei por uma resposta, por um sinal de que você estava presente na minha vida, mas você nunca se ocupou de mim. Vivi às margens da sua vida ridícula, sua vadia temperamental!

Silêncio.

- Minha luta foi inglória durante todos esses anos. Agora, não dá mais, eu tomei essa decisão e não vou, não posso voltar atrás.

Silêncio.

- Não fique me olhando com esses olhos parados, fiz tudo que podia, não posso fazer mais nada.

Silêncio.

E, ainda chorando, confessou:

- Eu te amei mais do que a mim mesmo, por isso permaneci até agora. Mas eu não aguento mais. Eu jamais poderia te deixar, você entende?

Silêncio

- Você entende porque estou fazendo isso? Eu espero que você me perdoe algum dia.

Ele levantou, olhou pela última vez aqueles olhos de jabuticaba parados, frios, sem brilho.

E ela não respondia. Não responderia nunca mais.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O ante-projeto

Fazia pouco tempo que se conheciam, mas não tinham dúvidas, aquele momento escolhido ao acaso pelo destino era o momento certo.

Saíram para caminhar entre as árvores. A intenção era deitar debaixo de uma árvore aconchegante, cada um com seu livro. Ele, com "O Universo numa casca de noz", de Stephen Hawking. Ela, com "Ensaio sobre a lucidez", de José Saramago.

Eram quase iguais, sendo completamente diferentes. Uma versão um pouco distorcida de "Eduardo e Mônica", de Renato. Ele, mais culto, pós-graduado, responsável. Ela, sem compromisso, vivia no happy hour com os amigos.

Andaram por vários minutos, de mãos dadas, conversando sobre o tempo, livros, árvores e amores perdidos. Ela era sua namorada, mas ele não era o namorado dela. Confuso demais. Ele queria amar, ela preferia um futuro mais estável que o amor, ainda que fosse solitário. Ele sabia.

Tomou coragem, então. Ele parou à sua frente, ajoelhou-se e começou a recitar um trecho decorado de uma das peças de Shakespeare, isso deveria ser infalível. Ela ria e olhava para os lados, incrédula, envergonhada, feliz.

... E depois da pequena encenação ele soltou: "Quer namorar comigo?"

O fim dessa história é triste e revoltante aos olhos insensíveis. Ela queria, mesmo sem querer. Ou não queria, mesmo querendo. Na dúvida, fugiu.

Mas ele continua lá, esperando por ela.



Ps: O texto não terminou. Espero parcerias para, quem sabe, um dia, trazer de volta a amada ao seu herói.