Crônica, segundo o dicionário:

1. História que expõe os fatos em narração simples e segundo sua ordem;
2. Biografia escandalosa;
3. Diz-se da doença permanente no indivíduo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Porta-retrato-falado

Ele não sabia mais o que fazer, já havia pensado em tudo, mas nada era capaz de apagar aquele cheiro de solidão. Há muito não eram mais aquele casal perfeito dos porta-retratos espalhados pela casa. Sentia saudades daquele tempo, do sorriso dela, dos carinhos mútuos, da compreensão e do perdão sempre disposto.

Agora, apenas olhava aquele rosto frio e ouvia o silêncio aterrador. Surtou. Ajoelhou-se ao lado dela em prantos, com um de seus porta-retratos em mãos.

- Há anos eu fico aos seus pés e te ouço dizer que eu faço tudo errado. A verdade é que eu nunca fui bom o suficiente pra você.

Silêncio.

- Talvez não seja só impressão, a verdade é que nunca foi amor. Nos casamos por decisão, por compaixão, porque não havia mais nada a fazer.

Silêncio.

- E nós nunca fomos felizes, Rosa. - lançou um dos porta-retratos na parede - Essas fotos não são nada mais que uma felicidade inventada, não era real pois, se fosse, não acabaríamos assim.

Silêncio.

- Durante muitos meses (e por que não "anos"?) eu esperei por uma resposta, por um sinal de que você estava presente na minha vida, mas você nunca se ocupou de mim. Vivi às margens da sua vida ridícula, sua vadia temperamental!

Silêncio.

- Minha luta foi inglória durante todos esses anos. Agora, não dá mais, eu tomei essa decisão e não vou, não posso voltar atrás.

Silêncio.

- Não fique me olhando com esses olhos parados, fiz tudo que podia, não posso fazer mais nada.

Silêncio.

E, ainda chorando, confessou:

- Eu te amei mais do que a mim mesmo, por isso permaneci até agora. Mas eu não aguento mais. Eu jamais poderia te deixar, você entende?

Silêncio

- Você entende porque estou fazendo isso? Eu espero que você me perdoe algum dia.

Ele levantou, olhou pela última vez aqueles olhos de jabuticaba parados, frios, sem brilho.

E ela não respondia. Não responderia nunca mais.

6 comentários:

  1. Talvez como nunca na vida havia respondido...
    O não saber é realmente o pior lugar do mundo e as vezes só nos resta jogar o porta retrato na parede e ir embora.
    Conformados com nao ter respostas.

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  2. Ainda bem que n tenho porta-retratos... e esse silêncio é o silêncio que antecede o silêncio, acho que é a pior coisa de todas, as vezes esperamos algo, um esporro, um chute, um tapa, mas o silêncio é a pior forma de resposta... ai inquietante essa crônica, ele matou ela ou ela ja estava morta ali ha muito tempo?

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Pois é, Má, ela me inquieta um pouco também, apesar de ser "cria" minha...rs.

    Quando comecei a escrever, ele a tinha matado (Porque eu sempre penso no final antes de começar). Depois de pronta, percebo que ele já estava morto também, há muito tempo...

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  5. Fez bem em não fazer com que ele a matasse!
    Deixe-a assim, com os olhos de jaboticaba, frios, sem brilho, com sua presença enorme...eterna...

    Muito boa crônica, parabéns mais uma vez.

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  6. Silêncio realmente é a pior das respostas. Eu sou muito 'sim' e 'não' pra me conformar com um 'sei lá'...

    E Bia... a caixa de vomitinhos às vezes fala mais que o próprio post, percebeu? to adorando.

    Ah, e quando vc comentou "Pois é, Má, ela me inquieta um pouco também" eu fiquei pensando "uai, mas como ela sabe que me inquietou?" Já que meu M. é de Marcella...
    Depois que vi que a resposta nao era pra mim... To até me confundindo já...rs

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